Logo na primeira linha, vi-me a indagar como deveria direcionar-me a ti. Pensei no coloquial "Querida", mas a idéia de achar-me insana, por tratar-te de forma tão íntima, alertou minha prudência. Então, lembrei-me de "Esplêndida", mas se, por algum momento, viesse a chamar-me mentalmente de "puxa-saco", chegaria a ferir-me mesmo que eu própria não sentisse. Escolhi, enfim, o "Cara" por ser rebuscado e não tanto formal, contudo, explicações eram necessárias para que não me imaginasse insípida.
O fato é que resignei minhas palavras, temendo que não fossem adequadas. Entenda: é difícil escrever para tão grande escritora brasileira sem temer falhar, ainda mais quando trata-se da minha escritora favorita. Sim, é minha escritora favorita.
Identifiquei-me, à primeira vista, com o primeiro poema de sua autoria que tive contato: "Retrato". Tinha 15 anos. Nunca esquecerei as palavras que, naquele instante, espelhavam exatamente a minha alma, digna de uma adolescente mutante.
Aos poucos, fui descobrindo seu legado, as "Noções" que se formavam em sua "Atitude". A "Gargalhada" do seu "Discurso" encantou-me. Entendi: o efêmero e o eterno sempre irão diferenciar-se.
E assim pude ver o "4º motivo da rosa" que traz a "Reinvenção" do "Noturno" luar "Depois do Sol". Veja, portanto, o "Motivo" da minha "Timidez" inicial... Esplêndida ainda é pouco para você.
Espero que aprecie esta carta. Enderecei-a a sua alma, pois sei que em espírito ambas acreditamos.
E findo-a com o poema que, há muito, tornou-se meu preferido e com o singelo agradecimento dessa sua admiradora, que sempre vê-se explicitamente implícita nas entrelinhas de seus versos.
Retrato
"La reproduction interdite" de René Magritte |
Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
— Em que espelho ficou perdida
a minha face?
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
— Em que espelho ficou perdida
a minha face?
E no fim, "É preciso não dizer nada". A poesia fala por si.
Nota: Caro leitor, no texto há palavras destacadas em aspas e em cor diferente do restante escrito. Estas palavras são links de poemas da escritora Cecília de Meireles com os mesmos nomes, assim como as três fotografias no rodapé deste blog. Clique e aprecie-os.